domingo, 16 de janeiro de 2011

FALAR BRASILEIRO
Viva Adoniran Barbosa!

Por Marcos Bagno

Foi celebrado o centenário de um nome da música popular brasileira que é um verdadeiro personagem da nossa história cultural: Adoniran Barbosa. Esse João Rubinato (seu nome verdadeiro) recorreu a uma linguagem que tentava representar, com muita graça, o cotidiano das classes mais humildes da cidade de São Paulo, sobretudo dos imigrantes italianos. É preciso ressaltar, no entanto, que essa linguagem aparece ali de modo caricatural e nunca como a transcrição fiel de alguma variedade linguística autêntica. E é aí que mora o perigo quando tentam utilizar Adoniran na escola para o estudo da variação linguística.

Adoniran, junto com o personagem Chico Bento (de Maurício de Sousa), o compositor Luís Gonzaga e o poeta Patativa do Assaré, compõe o grupo das “vítimas” preferenciais do trabalho que se faz, em muitos materiais didáticos, com o fenômeno da variação. O grande problema é que existe ali uma tendência a tratar da variação linguística em geral como sinônimo de variedades regionais, rurais ou de pessoas não-escolarizadas. Parece estar por trás dessa tendência a suposição (falsa) de que os falantes urbanos e escolarizados usam a língua de um modo mais “correto”, mais próximo do padrão, e que no uso que eles fazem não existe variação, o que não é verdade.

Daí a insistência dos materiais didáticos em apresentar como exemplos de variação linguística uma tirinha do Chico Bento, um samba de Adoniran, um baião de Luís Gonzaga ou um poema de Patativa. Qual o problema? Muito simples: não são representações fiéis das variedades linguísticas que supostamente veiculam. Não são, nem têm que ser, já que em todas essas manifestações está presente uma intenção lúdica, artística, estética e, nem de longe, um trabalho científico rigoroso. A responsabilidade pelo problema não é de Maurício de Sousa, não é de Adoniran, nem de Gonzagão, nem de Patativa — o problema está no uso inadequado que se faz dos trabalhos criativos dessas pessoas.

Os primeiros versos do conhecido “Samba do Arnesto”, por exemplo, dizem assim: “O Arnesto nos convidou / prum samba, ele mora no Brás, / nós fumo e não encontremo ninguém...”. Ora, a terceira palavra do primeiro verso, o pronome oblíquo “nos”, é de uso muito restrito no português brasileiro contemporâneo falado, sobretudo nas variedades ditas “populares”, como aquela que o samba pretende retratar. Dificilmente as pessoas que usam as outras formas linguísticas que aparecem no samba ― “nós fumo”,  “encontremo”, “vortemo”, “nós num vai mais”, “reiva”, “ponhado” etc. ― usariam esse “nos” oblíquo. Mais provável seria “convidou nós” ou “convidou a gente”. No entanto, como o compromisso de Adoniran é com a música e a métrica dos versos, ele usou o “nos”, opção perfeitamente legítima para um compositor. Limitar o estudo da variação às falas rurais ou urbanas sem prestígio é criar uma falsa sinonímia entre variação linguística e “erro”, o que só serve para estimular o preconceito linguístico, já tão impregnado na nossa cultura.

Marcos Bagno é linguista e escritor.
www.marcosbagno.com.br

Um comentário:

  1. Lécia,

    A temática da variação linguística é riquíssima. Ao trabalhar com músicos como adoniran Barbosa estamos dando voz a milhares de pessoas que são marginalizadas socialmente. O texto de Bagno é excelente. Um linguista que discute o tempo todo a variação linguística. E discutir variação com Adoniran Barbosa só enriquece a temática.

    Abraços
    Lidiane

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